domingo, 15 de dezembro de 2019

Sensação.


É o caos!
Vida besta
sem motivo
sem ser...

Eu aqui, preso na obscuridade
enquanto lá fora
a vida se estende
em todas as direções
de todas as formas.
No sol
nas pedras
nos homens
nas águas de um rio
acotovelando-se ruidosamente
na ânsia de chegar primeiro;
no sorriso da vegetação
umedecida pelas mesmas águas do rio
que brincam de pular altura;
na felicidade da plenitude do azul
sem mácula
de um céu que já foi cinzento.
Na esperança trazida pela brisa
que sopra de mansinho...


E eu,
nos meus vinte e cinco anos
no fim da vida
com a vida toda pela frente...

Lá fora a vida contagia.
Gente alegre
com gente sã
com gente jovem
com gente velha
com gente que vive
com gente que espera.

E eu aqui,
inútil e indiferente a tudo
sem razão de ser...

Como um grupo de soldados .Como um grupo de soldados
esfarrapados, idealistas
sem comando e sem comida
sem família e sem motivo
lutando desesperadamente
sem saber que a guerra acabou...

Como as águas deste rio .Como as águas deste rio
a minha frente
correndo sempre na mesma direção
com pressa de chegar

sem saber aonde
sem saber pra quê
sem saber por quê
sem outra alternativa...

Como um condenado, .Como um assassino
na prisão perpétua,
lutando pela sobrevivência
com alguns metros de mundo
para viver a vida toda
consciente do seu estado
certo de suas desesperanças...

E eu aqui, .E eu aqui
assistindo a tudo
mudo e cego...

 .E lá fora a vida...
Salto do Avanhandava, 09.08.70

Desligamento.


Domingo.
Sol e céu.
Céu, sol e vida.
Lá fora, na rua.
Lá fora, no mundo.

É quase hora do almoço
de um domingo quente.
A porta de vidro do escritório, fechada
o sol olhando de cima.
A esta hora a missa da elite
deve ter-se acabado
(e eu a freqüentei muito)
e os jovens, libertos, vivem neste momento;
alguns aproveitam, na saída da igreja
a passagem pelo jardim
para dar voltas;
outros, nos cantos isolados,
falam de amor!?

Os garotos, pobres coitados, inocentes,
passam aqui à frente,
mas não lhes ouço a algazarra,
só lhes percebo os movimentos;
e eles, apesar de tudo, parecem viver;

alheios à vida, alheios a si mesmos
alheios as suas condições de gente.
Ali no bar da esquina,
entre um aperitivo e outro,
imagino as mesmas figuras de sempre:
Seu Flores, Zé Barbeiro,
o Izaltino, o Sotelo
e muitos outros
que já entraram para a rotina da vida
e podem passar horas e horas
falando das mulheres alheias,
de futebol, de pescarias e,
às vezes, até de coisas sérias.

O domingo continua.
Sol, céu e vida!?
Lá fora, na rua, no mundo.

De quando em vez,
passa um rapaz pela porta
rumo ao campo de futebol
e faz sinais para mim;
só sinais pois, fechado aqui dentro,
não posso ouvir-lhe a voz;
e eu, indicando a montanha de serviço
sobre a mesa, digo que não vou;
abaixo a cabeça e ele vai embora,
rumo à alienação.

E é domingo!
Da missa
do jardim dos namorados
da rua das crianças
da esquina das mulheres
do bar dos homens livres
dos rapazes do futebol
da alienação
do céu sem nuvens, azul!?
do sol quente, vida!?

Eles, lá fora,
vivem e não sentem;
E eu, aqui dentro,
sinto e não vivo.

Barbosa, 16.08.70.

Progresso.


Homem setenta
Homem após lua
Homem inteligência
Homem isolado.

Máquina / Homem = Progresso.

 Ando pelas ruas
 perguntando o porquê disto tudo.
 A humanidade abandonou
 o mecanismo de sorrir.
 O sorriso emperrou.
 E por todos os cantos
 são rostos contraídos
 sobrancelhas carregadas
 testas enrugadas
 olhos no horizonte
 pensamentos distantes.

 O homem já não sente
 nem frio nem calor
 nem alegria, nem dor, nem nada.
 Só obedece,
 só executa.

 Na calçada o Corcel
 No tanque a Esso
 É o progresso.

  Em casa,
 o homem se esquece que tem mulher
 esquece os filhos
 a torneira quebrada
 a guerra a fome e a vida.
 Na sala a televisão
 General Eletric of Brazil
 Paz, tranqüilidade, Sucesso.

 O homem já não sabe como agir.
 Ensinaram-no a pensar
 pensar...pensar...pensar!
 Fórmulas e projetos
 Combustíveis e espaçonaves
 Botões e painéis
 Investimentos e ações...
 
 E o homem esquece que existe
 E o homem esquece que vive 
 O homem já não é um organismo
 O homem é causa e efeito
 O homem é o próprio PROGRESSO!
 
 Barbosa, 16.08.70.

Gerações.


O garotinho
engraxa-me os sapatos
aqui mesmo
onde tantas vezes
ganhei o dinheiro
para o pão da tarde
na mesma profissão de engraxate.

A tarde é morna,
como sempre,
no verão eterno
da minha Penápolis.

O cenário é o mesmo onde ontem
eu trazia meu irmãozinho para brincar
depois da aula
depois do banho
para que minha mãe pudesse fazer a janta.

Neste mesmo cenário
amanhã eu trarei meu filho,
parecido com meu irmãozinho,
e eu o verei correr
por entre estas árvores e passeios
e eu o verei cair
como aquela menina o fez agora, e chorar.
Na próxima semana,
talvez,
trarei meu neto,
gordinho e moreno
cabelos lisos e olhos vivos
nestes mesmos passeios
sob estas mesmas árvores
e eu me sentarei neste mesmo banco.

Quem sabe um dia, ainda,
eu possa ver reunidos
meu irmãozinho, meu filho e meu neto,
unidos,
brincando às mesmas sombras
tropeçando nas mesmas pedras
e eu, sentado neste banco,
sentindo o peso dos anos,
aspirarei este mesmo ar
observarei estas mesmas árvores
e bancos e passeios
impregnados de eternidade
insensíveis e estáticos
numa tarde morna
de verão eterno.

- O outro pé, vovô!

Penápolis, 24.08.70.

Poema no chão.


No dia em que eu assumir o meu próprio controle
e puder olhar de longe,
a vida, os homens e a mim mesmo...

No dia em que eu for "eu"
sem conta no banco
sem obrigações a cumprir...

No dia em que eu for "meu"
sem papel em cartório
sem dono e sem patrão...

No dia em que eu realmente nascer
sem laços de família
sem noite e sem dia...

No dia em que eu me libertar totalmente
e puder pagar o meu preço...

Aí, então, sorrirei,
Normalmente, equilibradamente
não de mim mesmo, como um palhaço,
mas como Gente...

- Simplesmente, Gente!

Penápolis, 02.09.70.